terça-feira, 6 de julho de 2010

Vida e Formação: Vida é Formação - Uma "leitura" da obra "Os Grandes Banhistas" do pintor Paul Cézanne


Informações sobre a pintura:
Artista: Paul Cézanne (1839-1906)
Título: Os Grandes Banhistas
Ano: 1906
Técnica: Óleo sobre tela
Dimensões: 208×249 cm
Local atual: Museu de Arte da Philadelphia

Danielle Antunes



Olhar uma obra de arte é uma experiência capaz de despertar em quem a observa diversificadas percepções. Primeiramente é perceptível que há uma “intenção”, ainda que subjetiva, do artista que a cria, tornando-a uma materialização de uma expressão humana. No entanto, além da intenção do artista, há também uma percepção que é nossa, que nos remete a diversificados sentimentos e pensamentos que transitam em nós, suscitando alguma “leitura” da obra. Leitura por considerar a pintura uma “linguagem” visual. Leitura significa não uma mera contemplação, mas uma busca por compreender, decifrar, analisar, traduzir essa língua que ouvimos através dos olhos A tradução realizada pode ser feita sob diversas óticas e perspectivas, não mais apenas seguindo determinados juízos éticos ou estéticos.
Eis aí o grande sabor que a obra de arte pode oferecer: permite ao observador que faça viagens perceptivas, emotivas, sensoriais, degustando movimentos, tonalidades e traços dentro de uma riquíssima multiplicidade dos sentidos, conduzindo-os sempre a sentimentos variados. Um entendimento racional e explicativo de seus elementos pode ou não fazer parte desta leitura. A partir dessa perspectiva, a arte revela seu caráter libertador em relação ao jugo discursivo. Por se tratar de arte envolve criatividade, tanto por parte do artista como do observador. Mostra que obra de arte não está sujeita apenas a interpretações racionais, discursivas e explicativas. Ela possibilita ao observador desfrutá-la sob diversas óticas, por diversas vezes. É ilimitado seu potencial interpretativo e criativo.
É através da grande janela de leitura dessa linguagem visual que é a obra de arte que criarei a relação entre uma obra específica, quer seja – “Os Grandes Banhistas” de Paul Cézanne – e o conceito de formação. Também utilizarei aforismos escritos por Nietzsche em Humano Demasiado Humano (2005) e trechos do romance “Os Sofrimentos do Jovem Werther”de Johann Wolgang Goethe, para aprofundar e ampliar o conceito de formação humana que aqui desenvolvo. Não partirei do conceito em direção à obra de arte, mas do seu contrário. Pretendo conduzir os observadores diante da obra de Cézanne a pensar numa, apenas uma, das infinitas possibilidades de abordagem do vasto conceito de formação humana.
A vida como formação
Com o conceito de formação em minha mente (ainda não definido, mas com alguns elementos possíveis de pensá-lo de forma aberta), parti para a pesquisa de imagens que pudessem me remeter a uma noção de formação. As próprias imagens observadas me conduziram a pensar em novas perspectivas do que é a formação do ser humano. Despertaram em mim novas formas de pensar sobre formação. Causaram-me uma viagem por múltiplos cenários que podem compor o amplo conceito de formação humana.
Com a amplitude que se deu em minhas concepções ao pensar sobre formação humana, tornou-se inevitável não pensar na própria vida como um grande processo de Formação. Entendendo a vida humana em sua natureza biológica, como um ser vivente em um planeta povoado por infindas diversidades de vidas, sendo também este planeta o meio ambiente no qual se vivem as vidas, incluindo obviamente, a vida humana.
Viver a vida nesse planeta, que apresenta como elemento primordial constitutivo de sua matéria o que chamamos de “natureza”, constitui uma experiência existencial no ser humano, a qual ele pode se dar conta por diversificadas maneiras, mas não sem se dar conta de seu pertencimento a esse ecossistema e sua intrínseca dependência dele para que possa garantir sua sobrevivência.
Cézanne em “Os Grandes Banhistas”, que, diga-se de passagem, é uma das obras-primas da arte moderna, retrata um grupo de mulheres reunidas em seus estados corporais de natureza, ou seja, nuas, que estão à beira rio aparentemente sem qualquer propósito. Cézanne pinta a harmonia das figuras humanas com a paisagem, revelada através dos tons semelhantes entre os banhistas e a paisagem. Também evoca noções de calor, lazer e felicidade, numa quase vida paradisíaca. A vida humana ali representada se dá num quadro do simplesmente viver: não há roupas, nem construções, nem trabalho, nem pudores – o que há é o puro ócio.
É desse ócio, aqui na imagem vivido em grupo, quando se há tempo para contemplar a vida, conversar sem tempo nem compromissos, compartilhar um momento prazeroso, que aparece a oportunidade para que ocorra a formação humana entendida em seu patamar mais amplo e aberto, que é a do autoformar-se e a do formar ao outro para e pela vida mesma, distintamente da formação proporcionada por instituições e voltada a algum fim, como é uma formação para o trabalho, a ciência, a técnica, a arte, a política, a religião, etc. Dentro desta concepção viver já é formar-se, é nela que o ser humano ao viver se forma como humano, se forma para vivenciar sua existência humana, e vivencia sua existência formando-se, com possibilidades de exercitar todas suas capacidades físicas e espirituais. Poderia se tratar de uma formação primeira, formação esta que se inicia com o nascimento do indivíduo e que termina com a sua morte.
Esta formação primeira acontece dia-a-dia, nos momentos mais triviais do cotidiano. Desde as primeiras aprendizagens da vida, como, por exemplo, quando o bebê inspira seu primeiro fôlego, a forma como sabe onde encontrar o alimento, como reage para consegui-lo, como reconhece pouco a pouco as pessoas de seu convívio, como aprende a engatinhar e depois a andar, a falar... São infindas as aprendizagens que se dão ao longo da vida, e isso tudo significa formar-se, formar-se não com algum intuito específico para alguma finalidade, mas formar-se para viver, para sobreviver.
A formação “natural”, fornecida pela própria vida, ocorre indistintamente a todos e distintamente para cada um, de acordo com os diversos fatores que influenciam o ser de cada um, como época, local, etnia, cultura, religião, grupo familiar, gênero, educação, etc. e etc. Cada indivíduo forma-se com uma singularidade tamanha como cada um recebe na formação corporal uma impressão digital única. Desta ótica a formação pode ser vista como uma obra de arte que se materializa a partir da existência e da experiência de cada criatura. Formação esta que se dá num constante vir-a-ser, dia após dia, e que só se finda com o fim da vida de cada indivíduo.
Cézanne em diálogo com Nietzsche sobre a vida como formação
Retornando à obra de Cézanne, ela retrata apenas um momento dessa constante formação, porém um momento singelo, capaz de traduzir com grandeza a formação que viver proporciona a cada ser vivo, supremamente colocada no acontecimento pintado no qual as mulheres estão juntas, sem pressa nem serviços, com seus corpos libertos de vestimentas e paredes, desfrutando um momento de lazer, de nada fazer, apenas ali estar. Quem sabe conversar e sorrir, quem sabe calar e contemplar, afinal um momento como esse proporciona diversas possibilidades de ser e estar. Há críticos da obra “Os Grandes Banhistas” que comparam as mulheres ali presentes com deusas, entidades divinas, tamanha é a liberdade e desprendimento que as mulheres ali presentes expressam. E associando essa analogia com o conceito de formação humana, é possível pensar na formação humana que recebemos e que damo-nos ao nos aproximarmos de nossa natureza humana despida de suas empreitadas.
Sobre essa disposição de calma diante da vida, e também de estado natural, Nietzsche escreve no aforismo 626 intitulado “Sem melodia”:

    Há pessoas nas quais um constante repousar em si mesmas e uma harmoniosa disposição das faculdades são tão próprios, que lhes repugna qualquer atividade dirigida para um fim. Elas semelham uma música que consiste apenas em acordes harmônicos sustentados por longo tempo, sem mostrar sequer o início de um movimento melódico articulado. Toda movimentação vinda de fora serve apenas para dar imediatamente a seu barco um novo equilíbrio, no lago da consonância harmônica. Em geral as pessoas modernas ficam muito impacientes, ao se defrontar com essas naturezas que nada se tornam, sem que delas se possa dizer que nada são. Mas há estados de espírito em que a sua visão desperta a pergunta inusitada: para que melodia, afinal? Por que não nos basta que a vida se espelhe quietamente num lago profundo? – A Idade Média era mais rica em tais naturezas do que o nosso tempo. Como é raro ainda encontrarmos alguém capaz de seguir vivendo de maneira pacífica e alegre consigo também no torvelinho, dizendo a si mesmo as palavras de Goethe: “O melhor é a calma profunda em que diante do mundo eu vivo e cresço, e adquiro o que não me podem tirar com o fogo e com a espada.” (p. 263-264, 2005)
Sentir-se um ser vivente, parte integrante desta Terra que é a que nós humanos habitamos, em contato com a natureza e com nosso estado natural, conduz-nos a uma percepção da vida como integração a esta mesma natureza, fazendo-nos permitir que sejamos formados por ela. Observá-la, compreendê-la em suas leis de preservação e renovação, aceitar-se como um organismo vivente, dotado de vontades e necessidades e sujeitos às intempéries naturais, é uma disposição capaz de propiciar uma formação humana para esta vida neste planeta.
É evidente que no estado atual de produção da vida humana política e economicamente, apenas essa formação para a vida natural não é suficiente, mas é notável que sem ela, sem a consciência de que somos seres viventes integrantes de um planeta que tem na natureza sua substância primordial, também não sobreviveremos. Porém, para adquirir esta formação que provém da natureza, é necessário tempo, e tempo ocioso.
É preciso que o ser humano não seja absorvido por completo pelas exigências de obter lucro, pela necessidade do trabalho. É preciso que ele dedique tempo a si mesmo, que possa ter tempo para não fazer nada, ou que esse não fazer nada seja tempo para ler um livro que queira, que o tenha para conversar com os seus pares, para estar em meio a natureza, como nos diz Nietzsche “Gostamos muito de estar em plena natureza, porque ela não tem opinião alguma sobre nós.” (p. 242, 2005). É necessário um desligamento do mundo dos negócios e das opiniões para que possamos “sentir” o que é a vida mesma.
Nietzsche também nos traz uma visão da vida como lucro da vida mesma ao dizer “Por mais que o homem se estenda em seu conhecimento, por mais objetivo que pareça a si mesmo: enfim nada tirará disso, a não ser sua própria biografia.” (p. 242, 2005). No entanto, é no seguinte aforismo (p. 260, 2005) que Nietzsche nos coloca a importância de se desprender do tempo em que se vive, incluindo as concepções e todo o arcabouço cultural e histórico da humanidade, para que a partir de uma outra perspectiva o ser humano possa buscar sua autoformação:

    616. Alienado do presente. – Há grandes vantagens em alguma vez alienar-se muito de seu tempo e ser como que arrastado de suas margens, de volta para o oceano das antigas concepções do mundo. Olhando para a costa a partir de lá, abarcamos pela primeira vez sua configuração total, e ao nos reaproximarmos dela teremos a vantagem de, no seu conjunto, entendê-la melhor do que aqueles que nunca a deixaram.
Cézanne em diálogo com Goethe sobre a vida como formação
Com Cézanne em “Os Grandes Banhistas” também é possível evocar, através da imagem pintada, trechos poéticos da obra “Os Sofrimentos do Jovem Werther” de Goethe. O romance escrito através de cartas de Werther para seu amigo e confidente Wahlheim descreve momentos vividos pelo jovem ao se mudar de cidade cumprindo os pedidos da mãe em visitar e conversar com sua tia a respeito dos mal entendidos da herança de ambas. Porém, ao realizar tal tarefa, experiencia momentos de rara contemplação e beleza diante do novo local ao qual se encontra, expressos primeiramente, nas seguintes palavras:

    A solidão, neste verdadeiro paraíso, é um bálsamo para o meu coração sempre fremente, que transborda ao calor exuberante da primavera. Cada árvore, cada sebe forma um tufo de flores, e a gente tem vontade de transformar-se em abelha para flutuar neste oceano de perfumes e deles fazer o único alimento.
Embora contemple a solidão, situação em que está, não nega posteriormente o estar em grupo, e nem o grupo lhe tira esta possibilidade de maravilhamento diante do paraíso, mas o que quero ressaltar é o sentimento de vida que ele experimenta, sentimento este que lhe mostra, por outras vias que não o objetivo pelo qual está lá, o que é viver. A grandeza do sentimento diante da beleza da natureza é um sentimento formador do ser humano.

    Minha alma inunda-se de uma serenidade maravilhosa, harmonizando-se com a das doces manhãs primaveris que procuro fruir com todas as minhas forças. Estou só e abandono-me à alegria de viver nesta região criada para as almas iguais à minha. Sou tão feliz, meu amigo, e de tal modo mergulhado no tranquilo sentimento da minha própria existência, que esqueci a minha arte. Neste momento, ser-me-ia impossível desenhar a coisa mais simples; e, no entanto, nunca fui tão grande pintor. Quando em torno de mim os vapores se elevam do meu vale querido, e o sol a pino procura devassar a impenetrável penumbra da minha floresta, mas apenas alguns dos seus raios conseguem insinuar-se no fundo deste santuário; quando, à beira da cascata, ocultas sob os arbustos, descubro rente ao chão mil diferentes espécies de plantazinhas; quando sinto mais perto do meu coração a formigar de um pequeno universo escondido embaixo das ervinhas, e são os insetos, moscardos de formas inumeráveis cuja variedade desafia o observador, e sinto a presença do Todo-Poderoso que nos criou à sua imagem, o sopro do Todo-Amante que nos sustenta e faz flutuar num mundo de ternas delícias ... ; então, meu amigo, é quando o meu olhar amortece, e o mundo em redor, e o céu infinito adormecem inteiramente na minha alma como a imagem da bem-amada; muitas vezes, então, um desejo ardente me arrebata e digo a mim mesmo: "Oh! se tu pudesses exprimir tudo isso! Se tu pudesses exalar, sequer, e fixar no papel tudo quanto palpita dentro de ti com tanto calor e plenitude, de modo que essa obra se tornasse o espelho de tua alma, como tua alma e o espelho de Deus!. . . " meu amigo! ... Este arroubamento me faz desfalecer; sucumbo sob a força dessas visões magníficas.
Neste trecho, reverencia a serenidade que lugares da natureza podem despertar nas pessoas, e o quanto estas experiências singelas devem ser fruídas, para que se tire não apenas o melhor delas, mas da vida mesma. Também revela a possibilidade de alegria que tal experiência proporciona, serenidade e alegria estas também expressadas por Cézanne em sua tela.
Goethe revela o potencial formador da experiência de submergir na natureza, e o quanto ela secundariza qualquer outra atividade humana. Mas também exorta o quanto esta experiência se reflete na vida mesma e nas atividades humanas, engrandecendo-as, ao dizer que esqueceu de sua arte de desenhar, mas que nunca fora tão grande pintor.
Assim como Cézanne expressa a beleza e a serenidade da natureza e da vida humana em meio a ela, Goethe belamente a revela de forma poética e romântica em seus escritos, contemplando um “mundo de ternas delícias”.

    A vida humana não passa de um sonho. Mais de uma pessoa já pensou isso. Pois essa impressão também me acompanha por toda parte. Quando vejo os estreitos limites onde se acham encerradas as faculdades ativas e investigadoras do homem, e como todo o nosso labor visa apenas a satisfazer nossas necessidades, as quais, por sua vez, não tem outro objetivo senão prolongar nossa mesquinha existência; quando verifico que o nosso espírito só pode encontrar tranquilidade, quanto a certos pontos das nossas pesquisas, por meio de uma resignação povoada de sonhos, como um presidiário que adornasse de figuras multicoloridas e luminosas perspectivas as paredes da sua célula ... tudo isso, Wahlheim, me faz emudecer. Concentro-me e encontro um mundo em mim mesmo! Mas, também aí, é um mundo de pressentimentos e desejos obscuros e não de imagens nítidas e forças vivas. Tudo flutua vagamente nos meus sentidos, e assim, sorrindo e sonhando, prossigo na minha viagem através do mundo.
Nesta passagem, Goethe nos remete à viagem interior que se opera em nós, ao realizarmos nossa viagem através do mundo. A viagem não é apenas um estado externo a nós, dado através de paisagens e coisas novas ás nossas vistas, mas é também experiência que nos transforma, que modifica nossa visão do mundo e de nós mesmos, fazendo-nos descobrir nosso mundo interior, e então trabalha a nossa autoformação.
Na visão de Goethe, representada pelo jovem Werther, a vida se confunde com o sonho, e do sonho necessita para manter sua tranqüilidade numa postura de “resignação povoada de sonhos”. Nela, assim como no sonho, não há imagens nítidas e forças vivas, mas sim um mundo de pressentimentos e desejos obscuros, revelado através dos “estreitos limites onde se acham encerradas as faculdades ativas e investigadoras do homem”. A intenção aqui é revelar o quão nós seres humanos estamos subordinados à vida dos sentidos, jamais conhecendo a sua totalidade, embora sempre em busca da mesma. Resta-nos vivenciar nossas experiências e conferir-lhes sentidos, procurando sentir a vida em sua intensidade, pensando sim, também tentando entendê-la, mas sem se esquecer de vivê-la. Sobre a primazia dos sentidos Goethe diz:

    As crianças - todos os pedagogos eruditos estão de acordo a este respeito - não sabem a razão daquilo que desejam; também os adultos. Da mesma forma que as crianças, caminham vacilantes e ao acaso sobre a terra, ignorando, tanto quanto elas, de onde vem e para onde vão. Não avançam nunca segundo uma orientação segura; deixam-se governar, como as crianças, por meio de biscoitos, pedaços de bolo e vara. E, como agem por essa forma, inconscientemente, parece-me, portanto, que se acham subordinados à vida dos sentidos.
Também perambula acerca da felicidade que a satisfação dos sentidos oferece àqueles que a satisfazem, como quão afortunados são os que se autoenganam em relação ao que realizam para si em nome de realizá-lo para o gênero humano. Mas o que confere tranquilidade ao ser humano que reconhece o resultado final de todas as coisas, como tanto o burguês como o miserável aspiram enxergar por um minuto a luz do sol, simplesmente por serem humanos, esse também é feliz, por reconhecer que todos podem sair das suas prisões simplesmente por serem livres:

    Concordo com você (porque já sei que você vai contraditar-me) que os mais felizes são precisamente aqueles que vivem, dia a dia, como as crianças, passeando, despindo e vestindo as suas bonecas; aqueles que rondam, respeitosos, em torno da gaveta onde a mamãe guardou os bombons, e, quando conseguem agarrar, enfim, as gulodices cobiçadas, devoram-nas com sofreguidão e gritam: "Quero mais!" Eis a gente feliz! Também é ditosa a gente que, emprestando nomes pomposos às suas mesquinhas ocupações, e até às suas paixões, conseguem fazê-las passar por gigantescos empreendimentos destinados à salvação e prosperidade do gênero humano.. Tanto melhor para os que são assim!. . . Mas aquele, que humildemente reconhece o resultado final de todas as coisas, vendo de um lado como o burguês facilmente arranja o seu pequeno jardim e dele faz um paraíso, e, de outro, como o miserável, arfando sob o seu fardo, segue o seu caminho sem revoltar-se, mas aspirando todos, do mesmo modo, a enxergar ainda por um minuto a luz do sol. . . sim, quem isso observa a margem permanece tranquilo. Também este se representa a seu modo um universo que tira de si mesmo, e também é feliz porque é homem. E, assim, quaisquer que sejam os obstáculos que entravem seus passos, guarda sempre no coração o doce sentimento de que é livre e poderá, quando quiser, sair da sua prisão.

Goethe exorta a força da vida em meio aos locais paisagísticos ao qual andou, à força que estar tranquilo em um local bucólico desperta no ser humano, para que ele possa assim sentir a vida em sua plenitude e experienciá-la de maneira a autoformar-se. Assim, entra em diálogo com a obra de Cézanne pois este também revela a plenitude e tranquilidade da vida humana em meio à natureza; e então, ambos revelam-nos a a propriedade de nos fazer pensar na vida como situação de formação humana.

Cézanne, Nietzsche e Goethe e a vida como centro da formação humana
A luz do sol. “(...) enxergar por ainda um minuto a luz do sol..”. Plenitude sentida por todos os seres vivos, e metáfora que serve para todos os sentidos além da visão, pois que, aquele que nasce, vem ao mundo, é lhe dada a luz. Pois que a vida, com todas as suas obscuridades e incertezas, é a oportunidade de se ver a luz do sol, de realizar experiências, adquirir aprendizagens, de se autoformar.
Minha intenção, ao utilizar trechos das obras de Nietzsche e Goethe, não é tratar das obras por completo, nem realizar análises sobre os conceitos empregados por ambos. É antes, no caso de Nietzsche, utilizar alguns poucos aforismos que nos permitam aprofundar nossos pensamentos sobre as questões da vida e da formação humana aqui apresentadas, e no caso de Goethe, não é mostrar o desenrolar romântico-trágico da obra, mas sim captar as paisagens naturais expressadas por ele de forma bela e profunda, bem como a relação que ele cria entre as paisagens naturais e seu mundo interior, o elo que há entre os estados que a natureza desperta nos seres humanos e a transformação interna que lhes ocorre.
Ambos, Nietzsche e Goethe, revelam a pequenez dos propósitos humanos imediatos diante da grandeza da natureza. Desvelam uma faceta humana que é a do humano e sua intrínseca ligação com a natureza através de sua vida, como um ser vivo que só vive porque pertence a uma biosfera natural, antes mesmo de qualquer objetivo cultural que o ser humano possa empreender. Insinuam de forma análoga, a necessidade de um desprendimento diante do mundo e do labor humano, para que assim se possa vislumbrar apenas como um ser vivente, e compreender a vida sob outras perspectivas. Finalizo com a poesia “Mestre” de Ricardo Reis, um dos heterônimos do grande poeta da língua portuguesa Fernando Pessoa (2006):
Mestre, são plácidas
Todas as horas
Que nós perdemos,
Se no perdê-las,
Qual numa jarra,
Nós pomos flores.
Não há tristezas
Nem alegrias
Na nossa vida.
Assim saibamos,
Sábios incautos,
Não a viver,
Mas decorrê-la,
Tranquilos, plácidos,
Tendo as crianças
Por nossas mestras,
E os olhos cheios
De Natureza ...
À beira-rio,
À beira-estrada,
Conforme calha,
Sempre no mesmo
Leve descanso
De estar vivendo.
O tempo passa,
Não nos diz nada.
Envelhecemos.
Saibamos, quase
Maliciosos,
Sentir-nos ir.
Não vale a pena
Fazer um gesto.
Não se resiste
Ao deus atroz
Que os próprios filhos
Devora sempre.

Colhamos flores.
Molhemos leves
As nossas mãos
Nos rios calmos,
Para aprendermos
Calma também.

Girassóis sempre
Fitando o sol,
Da vida iremos
Tranqüilos,tendo
Nem o remorso
De ter vivido.
(12/6/1914)

Referências:

GOETHE, Johann Wolgang. Os Sofrimentos do Jovem Werther. Disponível em
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. Tradução, notas e posfácio Paulo Cezar de Souza. – São Paulo: Compainha das Letras, 2005.
PESSOA, Fernando Odes de Ricardo Reis: obra poética III; organização, introdução e notas Jane Tutikian. Porto Alegre: L&PM, 2006.

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