terça-feira, 6 de julho de 2010

Tétis e Aquiles: o processo formativo e suas implicações



Aléssio da Rosa

Nossa intenção, com o presente texto, é buscar uma ideia de formação a partir da imagem de Tétis mergulhando Aquiles no rio Estige. Quereremos perceber o que esta imagem aponta para nós do seu lugar e como podemos cruzá-la com o conceito de formação, na perspectiva de Adorno, autor que estou pesquisando.

Entre os heróis gregos da batalha de Tróia, Aquiles foi o mais importante. Ele é jovem, impetuoso e forte, seu caráter era essencialmente guerreiro. É filho do rei Peleu e da deusa Tétis. Mas, como seu pai, Aquiles é mortal.

Aquiles é o resultado da aliança entre uma deusa e um mortal, um evento até muito comum na mitologia grega. Sua mãe é a deusa Tétis, que personifica a fecundidade do mar. Seu pai é o mortal Peleu, que reinava na região da Ftia. A criança herdou qualidades tantos dos deuses, como dos mortais. Para eliminar os dons mortais de seu filho mestiço e torná-lo invulnerável, Tétis mergulhou-o no Estige, o rio que corria abaixo da terra. Suas águas tinham o poder de aniquilar toda característica humana do bebê. As águas milagrosas, no entanto, não banharam o calcanhar da criança, pois Tétis o segurava justamente por este local. Aquiles cresce rápido, desenvolve a arte das armas e torna-se um grande guerreiro conhecido e temido em toda Terra.

A Ilíada não conta a morte do temível soldado. A narração dessa cena fica a cargo de outros relatos, por vezes contraditórios. Em uma das cenas mais sangrentas da Ilíada, o enfurecido Aquiles enfrenta o troiano Heitor, que havia assassinado seu amigo Pátroclo na Guerra de Tróia. Os dois se encontram do lado de fora das muralhas da cidade. Aterrorizado ao ver a imagem do imponente guerreiro, Heitor tenta fugir, mas Aquiles o alcança e o fere mortalmente com sua lança. Em seguida Aquiles ata os pés do cadáver ao seu carro, puxado por cavalos, e arrasta o corpo em volta de Tróia e do túmulo de Pátroclo. O herói só para quando Zeus intervém.

No mais conhecido destes combates, Aquiles se prepara mais uma vez para atacar Tróia quando o deus Apolo se ergue na sua frente e ordena que se retire da batalha. Aquiles nega o pedido Apolo e avança para a batalha. Páris, irmão de Heitor, se esconde atrás de uma estátua de Apolo e com seu arco atinge com uma flecha o seu único ponto vulnerável, o seu calcanhar. Daí a expressão cunhada ao longo da história: o calcanhar de Aquiles. Páris vinga seu irmão Heitor, tira a vida de Aquiles, mas não lhe tira a glória que perpassou os séculos e encanta milhões de pessoas até nossos dias. (COMMELIN, P. Mitologia grega e romana).

A imagem de Tétis e Aquiles nos remete ao cuidado para com os mais novos. No interior de cada mãe está o desejo de proteger seu filho, ou querer que este esteja imune às adversidades da vida, aos riscos que esta possa oferecer ao seu rebento.

A partir da Mitologia Grega podemos perceber que Tétis, tinha uma grande preocupação com seu filho. Sua preocupação era conseguir para seu filho a condição de deus, negada por Zeus, pelo fato de ela ter se unido a Peleu, um mero mortal. Diante da negativa de Zeus para com seus desejos, Tétis assume a missão de buscar para seu filho “uma condição melhor” e para isso procura protegê-lo através de algumas atitudes. Primeiramente ela o coloca no fogo para tirar do corpo de Aquiles os elementos humanos, e com isso esperava aproximá-lo mais da condição divina. Num segundo momento ela o mergulha no rio Estige para fortalecê-lo ainda mais. O banho no Estige concede a Aquiles uma condição de grande proteção, já adulto nada o afeta, o fere, pois está protegido. No entanto, apesar de ser um temível guerreiro Aquiles tem um ponto fraco, o calcanhar, seu único ponto vulnerável. Ao lado do grande guerreiro, há um ponto nevrálgico. Ao lado do desejo da mãe de superprotegê-lo há também o lado da limitação, da frustração, tão comum aos humanos.

De modo inconsciente ou talvez raramente consciente, muitos pais desejam que seus filhos sejam “divinos” – ainda que certamente não literalmente como Tétis. Creio que nenhum pai ou mãe ache que seu filho viverá eternamente, mas para alguns há o desejo de buscar que seu filho seja o primeiro da turma, seja o mais talentoso, o mais brilhante nas situações mais diversas do cotidiano. Com certeza, nenhuma criança alcançará este alto grau de excelência. Também há pais que veem nos filhos uma espécie de redenção de si próprios. Querem que seus filhos recebam tudo aquilo que na sua infância não tiveram por uma questão social ou econômica. E para que isto não se repita na vida de seus filhos fazem grandes sacrifícios, projetando nos seus filhos a realização que não tiveram. E quando estes caem, erram ou demonstram gratidão insuficiente da esperada, sentem-se ofendidos e decepcionados.

Podemos relacionar estes conceitos com o campo da formação. Colocar o filho à prova, para que este seja fortalecido para as batalhas da vida pode ser uma tentação que paire sobre as consciências de alguns pais igualmente. Mas este lançar o filho à prova traz consigo um elemento patológico. De um lado apresenta a ideia de proteção, de outra forma conduz a criança ao perigo. Os desejos conhecidos e comedidos certamente não irão causar danos à infância dos filhos. A dificuldade se encontra quando se ultrapassa o caráter consciente da justa medida em relação à proteção dos menores por parte dos adultos, daí as relações passam a ser danosas.

Tétis e Peleu, criados pela sabedoria de Zeus, traduzem de outra forma certo equilíbrio em se tratando da união divino/humano, mas aparentemente em relação à criança essa unidade foi quebrada, tendo em vista a ambição de Tétis de não aceitar a humanidade do filho. A vida dos pais nunca será perfeita, bem como a vida dos pequenos terá alto grau de perfectibilidade. A condição humana nos leva ao encontro da imperfectibilidade, da infinitude humana.

O processo de formação humana em Theodor Adorno e alguns dos seus companheiros da escola de Frankfurt, vai além de uma preocupação com o longo processo de apropriação de conhecimentos técnicos que poderá levar o indivíduo a um esclarecimento da consciência. Ao analisar as possibilidades para que uma formação fosse possível no ambiente que vivemos, Adorno recorda que a mesma deva acontecer no interior da sociedade, acompanhada por aqueles que devem ser referências para o processo formativo. Seja no ambiente escolar, seja no ambiente familiar, a formação para Adorno visa propor condições para a autonomia e a liberdade, mas dentro das condições que possibilite ao indivíduo despertar para uma consciência crítica. Por isso o ambiente escolar e antes o ambiente familiar, deve propiciar o exercício da autoridade, sem, no entanto, com isto cair num autoritarismo.

Ao não aceitar a dimensão humana de Aquiles, sua mãe faz a experiência do fracasso de tal atitude pela incompletude deste seu desejo uma vez que o calcanhar de seu filho fica desprotegido, o que mais tarde resultará na sua perda. Fazer a experiência dialética nos conduz a aprendizagem. Esta é compreendida como um processo formativo. Ela não é estanque, fechada em si mesma, nem imediata, mas ela se dá através da continuidade. O processo formativo pressupõe uma lógica da não identidade, uma inadequação no curso da experiência pela qual a realidade efetiva acontece. Mediante a relação do sujeito seja no campo social, seja no âmbito familiar e escolar, com a realidade que o cerca. Para isto exige tempo de mediação e continuidade, em oposição ao imediatismo e fragmentação da identidade de cada indivíduo.

No texto Tabus a respeito do Professor, Adorno menciona os vários momentos de desilusões dos alunos que projetaram seus ideais de ego na figura do professor/mestre e, posteriormente, descobriram da forma mais amarga que não houve correspondência com o modelo idealizado tanto cognitiva, quanto afetivamente. O mérito de Adorno nesta questão parece estar em que todos estes conflitos não são apenas idiossincrasias psicológicas dos preceptores, pois nas suas imanências estão presentes as mediações de uma sociedade cujos conteúdos humanistas verdadeiros de sua fala são negados antecipadamente pela reprodução de relações materiais cada vez mais iníquas. Sendo verdadeira essa argumentação, ainda assim, caberia uma pergunta: será que o processo de idealização do ego do aluno para com o mestre tornou-se realmente impedido de se perpetuar?

Parece-nos que na imagem de Tétis banhando Aquiles no Estige está muito bem estampada uma ideia recorrente de formação. Esta ideia num primeiro momento nos remete ao processo doloroso da formação. Formar pode ser uma violência, quando não se leva em consideração a ética do saber cuidar dos mais novos. Num segundo momento pode-se também intuir que se não houver essa vontade determinada (autoridade) que conduz a formação os mais novos, esta pode não vir a acontecer. Diante deste paradoxo percebemos que formar exige esforço da parte daquele que oferece a formação (professor, mestre) e daquele que está buscando a formação (novos).

Em um breve ensaio, Walter Benjamim, membro da Escola de Frankfurt então com 21 anos de idade, desenvolve um pequeno texto intitulado “Experiência”. Neste texto Benjamim define a experiência como a máscara do adulto. Ele nos diz: “em nossa luta por responsabilidade enfrentamos um mascarado. A máscara do adulto chama-se experiência” (BENJAMIM, 1984, P. 23). A proposta do ensaio é desmascarar esses homens que já experimentaram tudo. Para estes o sonhos da juventude soam como odiosos; é aquele que desdenha da juventude, ancorando-se na sua tábua rasa de suas próprias experiências apenas. São desprovidos de imaginação artística ou intelectual e por isso mesmo, pretendem empurrar os jovens desde cedo para a escravidão da vida. Como nos diz Benjamim:

Sim na verdade, o absurdo e a brutalidade da vida é a única coisa que experimentaram. Por acaso eles nos encorajaram alguma vez a realizar coisas grandiosas, novas, futuras? Oh, não! Pois isto não se pode experimentar. Tudo o que tem sentido, que é verdadeiramente, bom, belo está fundamentado sobre si mesmo – o que a experiência tem a ver com isso tudo? E aqui está o segredo: a experiência transformou-se no evangelho do filisteu porque ele jamais levanta os olhos para as coisas grandes e plenas de sentido, a experiência se torna para ele a mensagem da vulgaridade da vida. Ele jamais compreendeu que existem outras coisas além da experiência, que existem valores aos quais nós servimos e que não se prestam à experiência. (BENJAMIM, 1984, P. 23-24).

Benjamim apresenta o jovem como aquele que busca outra experiência, para além da já vivida pelo adulto. Para o jovem Benjamin, o adulto, mesmo que sagaz, é intolerante e ressentido, pois nega o espírito de sua juventude e demonstra ser incapaz de uma experiência outra carregada de sensibilidade. Para Benjamim a autoridade, e porque não dizer a formação, passa pela sensibilidade.

Para Tétis, e tantos outros que fazem uso da autoridade no processo formativo, parece-nos que faltou o uso da medida certa da autoridade, da condução dos mais novos. Como descobrir este equilíbrio entre autoridade e leveza? Como formar sem deformar? Como proteger os novos das pedagogias que impõem duras provas ao processo formativo, colocando em perigo a vida, a integridade física, psíquica dos mais novos. Existe uma pedagogia “modelo” que possa ser apresentada aos novos como sendo apenas formativa e não deformativa?

Para Adorno o processo formativo passa pela arte. Uma educação voltada para a arte. A arte de educar e/ou de formar conduz à liberdade, pois esta perpassa os processos contraditórios da formação, os seus limites, permitindo ao ser humano que faça uso da tolerância como uma importante ferramenta na arte de lidar com os limites dos próprios pais, ou das crianças, estabelecendo a dose certa do chamado à responsabilidade na arte de pensar, agir, sentir, como sujeito que também participa da construção de sua própria história. Para ele, há de se ter uma cultura da sensibilidade e da solidariedade também no processo de ensino-aprendizagem.

A história de Tétis e Aquiles no ensina que além de todos os modelos de pedagogias, não existe um verdadeiro e único modelo que assegurará a plena formação dos mais novos. Há de ser ter a justa medida para em nome de uma verdadeira condução, sabe usar a medida certa, mas com um tom de arte, exercendo a formação com autoridade, sem absterce de ternura e liberdade. Enfim, há de se correr riscos na arte da mestria.

BIBLIOGRAFIA

ADORNO, T. W. Educação e Emancipação. Trad. Wolfgang Leo Maar. 4ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

COMMELIN, P. Mitologia grega e romana. Trad. Eduardo Brandão. 3ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

BENJAMIM, W. A Origem do drama barroco Alemão. São Paulo: Brasiliense. 1984.

____. Documentos de cultura. Documentos de barbárie. São Paulo: Cultrix, 1986.

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