terça-feira, 6 de julho de 2010

Turma do GRAFIA no evento cultural "Imagens de Formação Humana"

Tétis e Aquiles: o processo formativo e suas implicações



Aléssio da Rosa

Nossa intenção, com o presente texto, é buscar uma ideia de formação a partir da imagem de Tétis mergulhando Aquiles no rio Estige. Quereremos perceber o que esta imagem aponta para nós do seu lugar e como podemos cruzá-la com o conceito de formação, na perspectiva de Adorno, autor que estou pesquisando.

Entre os heróis gregos da batalha de Tróia, Aquiles foi o mais importante. Ele é jovem, impetuoso e forte, seu caráter era essencialmente guerreiro. É filho do rei Peleu e da deusa Tétis. Mas, como seu pai, Aquiles é mortal.

Aquiles é o resultado da aliança entre uma deusa e um mortal, um evento até muito comum na mitologia grega. Sua mãe é a deusa Tétis, que personifica a fecundidade do mar. Seu pai é o mortal Peleu, que reinava na região da Ftia. A criança herdou qualidades tantos dos deuses, como dos mortais. Para eliminar os dons mortais de seu filho mestiço e torná-lo invulnerável, Tétis mergulhou-o no Estige, o rio que corria abaixo da terra. Suas águas tinham o poder de aniquilar toda característica humana do bebê. As águas milagrosas, no entanto, não banharam o calcanhar da criança, pois Tétis o segurava justamente por este local. Aquiles cresce rápido, desenvolve a arte das armas e torna-se um grande guerreiro conhecido e temido em toda Terra.

A Ilíada não conta a morte do temível soldado. A narração dessa cena fica a cargo de outros relatos, por vezes contraditórios. Em uma das cenas mais sangrentas da Ilíada, o enfurecido Aquiles enfrenta o troiano Heitor, que havia assassinado seu amigo Pátroclo na Guerra de Tróia. Os dois se encontram do lado de fora das muralhas da cidade. Aterrorizado ao ver a imagem do imponente guerreiro, Heitor tenta fugir, mas Aquiles o alcança e o fere mortalmente com sua lança. Em seguida Aquiles ata os pés do cadáver ao seu carro, puxado por cavalos, e arrasta o corpo em volta de Tróia e do túmulo de Pátroclo. O herói só para quando Zeus intervém.

No mais conhecido destes combates, Aquiles se prepara mais uma vez para atacar Tróia quando o deus Apolo se ergue na sua frente e ordena que se retire da batalha. Aquiles nega o pedido Apolo e avança para a batalha. Páris, irmão de Heitor, se esconde atrás de uma estátua de Apolo e com seu arco atinge com uma flecha o seu único ponto vulnerável, o seu calcanhar. Daí a expressão cunhada ao longo da história: o calcanhar de Aquiles. Páris vinga seu irmão Heitor, tira a vida de Aquiles, mas não lhe tira a glória que perpassou os séculos e encanta milhões de pessoas até nossos dias. (COMMELIN, P. Mitologia grega e romana).

A imagem de Tétis e Aquiles nos remete ao cuidado para com os mais novos. No interior de cada mãe está o desejo de proteger seu filho, ou querer que este esteja imune às adversidades da vida, aos riscos que esta possa oferecer ao seu rebento.

A partir da Mitologia Grega podemos perceber que Tétis, tinha uma grande preocupação com seu filho. Sua preocupação era conseguir para seu filho a condição de deus, negada por Zeus, pelo fato de ela ter se unido a Peleu, um mero mortal. Diante da negativa de Zeus para com seus desejos, Tétis assume a missão de buscar para seu filho “uma condição melhor” e para isso procura protegê-lo através de algumas atitudes. Primeiramente ela o coloca no fogo para tirar do corpo de Aquiles os elementos humanos, e com isso esperava aproximá-lo mais da condição divina. Num segundo momento ela o mergulha no rio Estige para fortalecê-lo ainda mais. O banho no Estige concede a Aquiles uma condição de grande proteção, já adulto nada o afeta, o fere, pois está protegido. No entanto, apesar de ser um temível guerreiro Aquiles tem um ponto fraco, o calcanhar, seu único ponto vulnerável. Ao lado do grande guerreiro, há um ponto nevrálgico. Ao lado do desejo da mãe de superprotegê-lo há também o lado da limitação, da frustração, tão comum aos humanos.

De modo inconsciente ou talvez raramente consciente, muitos pais desejam que seus filhos sejam “divinos” – ainda que certamente não literalmente como Tétis. Creio que nenhum pai ou mãe ache que seu filho viverá eternamente, mas para alguns há o desejo de buscar que seu filho seja o primeiro da turma, seja o mais talentoso, o mais brilhante nas situações mais diversas do cotidiano. Com certeza, nenhuma criança alcançará este alto grau de excelência. Também há pais que veem nos filhos uma espécie de redenção de si próprios. Querem que seus filhos recebam tudo aquilo que na sua infância não tiveram por uma questão social ou econômica. E para que isto não se repita na vida de seus filhos fazem grandes sacrifícios, projetando nos seus filhos a realização que não tiveram. E quando estes caem, erram ou demonstram gratidão insuficiente da esperada, sentem-se ofendidos e decepcionados.

Podemos relacionar estes conceitos com o campo da formação. Colocar o filho à prova, para que este seja fortalecido para as batalhas da vida pode ser uma tentação que paire sobre as consciências de alguns pais igualmente. Mas este lançar o filho à prova traz consigo um elemento patológico. De um lado apresenta a ideia de proteção, de outra forma conduz a criança ao perigo. Os desejos conhecidos e comedidos certamente não irão causar danos à infância dos filhos. A dificuldade se encontra quando se ultrapassa o caráter consciente da justa medida em relação à proteção dos menores por parte dos adultos, daí as relações passam a ser danosas.

Tétis e Peleu, criados pela sabedoria de Zeus, traduzem de outra forma certo equilíbrio em se tratando da união divino/humano, mas aparentemente em relação à criança essa unidade foi quebrada, tendo em vista a ambição de Tétis de não aceitar a humanidade do filho. A vida dos pais nunca será perfeita, bem como a vida dos pequenos terá alto grau de perfectibilidade. A condição humana nos leva ao encontro da imperfectibilidade, da infinitude humana.

O processo de formação humana em Theodor Adorno e alguns dos seus companheiros da escola de Frankfurt, vai além de uma preocupação com o longo processo de apropriação de conhecimentos técnicos que poderá levar o indivíduo a um esclarecimento da consciência. Ao analisar as possibilidades para que uma formação fosse possível no ambiente que vivemos, Adorno recorda que a mesma deva acontecer no interior da sociedade, acompanhada por aqueles que devem ser referências para o processo formativo. Seja no ambiente escolar, seja no ambiente familiar, a formação para Adorno visa propor condições para a autonomia e a liberdade, mas dentro das condições que possibilite ao indivíduo despertar para uma consciência crítica. Por isso o ambiente escolar e antes o ambiente familiar, deve propiciar o exercício da autoridade, sem, no entanto, com isto cair num autoritarismo.

Ao não aceitar a dimensão humana de Aquiles, sua mãe faz a experiência do fracasso de tal atitude pela incompletude deste seu desejo uma vez que o calcanhar de seu filho fica desprotegido, o que mais tarde resultará na sua perda. Fazer a experiência dialética nos conduz a aprendizagem. Esta é compreendida como um processo formativo. Ela não é estanque, fechada em si mesma, nem imediata, mas ela se dá através da continuidade. O processo formativo pressupõe uma lógica da não identidade, uma inadequação no curso da experiência pela qual a realidade efetiva acontece. Mediante a relação do sujeito seja no campo social, seja no âmbito familiar e escolar, com a realidade que o cerca. Para isto exige tempo de mediação e continuidade, em oposição ao imediatismo e fragmentação da identidade de cada indivíduo.

No texto Tabus a respeito do Professor, Adorno menciona os vários momentos de desilusões dos alunos que projetaram seus ideais de ego na figura do professor/mestre e, posteriormente, descobriram da forma mais amarga que não houve correspondência com o modelo idealizado tanto cognitiva, quanto afetivamente. O mérito de Adorno nesta questão parece estar em que todos estes conflitos não são apenas idiossincrasias psicológicas dos preceptores, pois nas suas imanências estão presentes as mediações de uma sociedade cujos conteúdos humanistas verdadeiros de sua fala são negados antecipadamente pela reprodução de relações materiais cada vez mais iníquas. Sendo verdadeira essa argumentação, ainda assim, caberia uma pergunta: será que o processo de idealização do ego do aluno para com o mestre tornou-se realmente impedido de se perpetuar?

Parece-nos que na imagem de Tétis banhando Aquiles no Estige está muito bem estampada uma ideia recorrente de formação. Esta ideia num primeiro momento nos remete ao processo doloroso da formação. Formar pode ser uma violência, quando não se leva em consideração a ética do saber cuidar dos mais novos. Num segundo momento pode-se também intuir que se não houver essa vontade determinada (autoridade) que conduz a formação os mais novos, esta pode não vir a acontecer. Diante deste paradoxo percebemos que formar exige esforço da parte daquele que oferece a formação (professor, mestre) e daquele que está buscando a formação (novos).

Em um breve ensaio, Walter Benjamim, membro da Escola de Frankfurt então com 21 anos de idade, desenvolve um pequeno texto intitulado “Experiência”. Neste texto Benjamim define a experiência como a máscara do adulto. Ele nos diz: “em nossa luta por responsabilidade enfrentamos um mascarado. A máscara do adulto chama-se experiência” (BENJAMIM, 1984, P. 23). A proposta do ensaio é desmascarar esses homens que já experimentaram tudo. Para estes o sonhos da juventude soam como odiosos; é aquele que desdenha da juventude, ancorando-se na sua tábua rasa de suas próprias experiências apenas. São desprovidos de imaginação artística ou intelectual e por isso mesmo, pretendem empurrar os jovens desde cedo para a escravidão da vida. Como nos diz Benjamim:

Sim na verdade, o absurdo e a brutalidade da vida é a única coisa que experimentaram. Por acaso eles nos encorajaram alguma vez a realizar coisas grandiosas, novas, futuras? Oh, não! Pois isto não se pode experimentar. Tudo o que tem sentido, que é verdadeiramente, bom, belo está fundamentado sobre si mesmo – o que a experiência tem a ver com isso tudo? E aqui está o segredo: a experiência transformou-se no evangelho do filisteu porque ele jamais levanta os olhos para as coisas grandes e plenas de sentido, a experiência se torna para ele a mensagem da vulgaridade da vida. Ele jamais compreendeu que existem outras coisas além da experiência, que existem valores aos quais nós servimos e que não se prestam à experiência. (BENJAMIM, 1984, P. 23-24).

Benjamim apresenta o jovem como aquele que busca outra experiência, para além da já vivida pelo adulto. Para o jovem Benjamin, o adulto, mesmo que sagaz, é intolerante e ressentido, pois nega o espírito de sua juventude e demonstra ser incapaz de uma experiência outra carregada de sensibilidade. Para Benjamim a autoridade, e porque não dizer a formação, passa pela sensibilidade.

Para Tétis, e tantos outros que fazem uso da autoridade no processo formativo, parece-nos que faltou o uso da medida certa da autoridade, da condução dos mais novos. Como descobrir este equilíbrio entre autoridade e leveza? Como formar sem deformar? Como proteger os novos das pedagogias que impõem duras provas ao processo formativo, colocando em perigo a vida, a integridade física, psíquica dos mais novos. Existe uma pedagogia “modelo” que possa ser apresentada aos novos como sendo apenas formativa e não deformativa?

Para Adorno o processo formativo passa pela arte. Uma educação voltada para a arte. A arte de educar e/ou de formar conduz à liberdade, pois esta perpassa os processos contraditórios da formação, os seus limites, permitindo ao ser humano que faça uso da tolerância como uma importante ferramenta na arte de lidar com os limites dos próprios pais, ou das crianças, estabelecendo a dose certa do chamado à responsabilidade na arte de pensar, agir, sentir, como sujeito que também participa da construção de sua própria história. Para ele, há de se ter uma cultura da sensibilidade e da solidariedade também no processo de ensino-aprendizagem.

A história de Tétis e Aquiles no ensina que além de todos os modelos de pedagogias, não existe um verdadeiro e único modelo que assegurará a plena formação dos mais novos. Há de ser ter a justa medida para em nome de uma verdadeira condução, sabe usar a medida certa, mas com um tom de arte, exercendo a formação com autoridade, sem absterce de ternura e liberdade. Enfim, há de se correr riscos na arte da mestria.

BIBLIOGRAFIA

ADORNO, T. W. Educação e Emancipação. Trad. Wolfgang Leo Maar. 4ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

COMMELIN, P. Mitologia grega e romana. Trad. Eduardo Brandão. 3ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

BENJAMIM, W. A Origem do drama barroco Alemão. São Paulo: Brasiliense. 1984.

____. Documentos de cultura. Documentos de barbárie. São Paulo: Cultrix, 1986.

Primeira missa no Brasil: entre o mito e a utopia



José Rogério Vitkowski

A primeira missa no Brasil, de Victor Meirelles é reconhecidamente uma obra de arte que faz parte do patrimônio cultural brasileiro. Essa obra prima é um óleo sobre tela, de dimensões expressivas 2,68m x 3,56m, e que faz parte atualmente do acervo do Museu Nacional de belas Artes do Rio de Janeiro, sob o tombo n 901.
A pintura foi produzida em Paris entre 1859 e 1860, durante a viagem de estudos de Victor Meirelles, artista catarinense, como bolsista da Imperial Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro, durante o império de D. Pedro II.
A obra é resultado de um conjunto de relações entre idéias, sonhos, projetos que perfaziam o imaginário cultural e político do sec XIX brasileiro. Conforme FRANZ (2003 p. 47) : “Este projeto torna-se mais evidente. De forma direta ou indireta, com a transferência da Corte Portuguesa ao Rio de Janeiro, em 1808, e consolida-se com as monarquias que se seguiram depois (1822-1889)”. Esse entorno caracteriza a construção sócio-política e cultural da pintura e é objeto de vários estudos.
Nesse texto intenciona-se uma abordagem inicial de exploração da Primeira Missa que possibilite cintilar conceitos a partir de elementos mítico-religiosos e estéticos presentes na obra, em interface com a questão humana. Não serão feitas relações diretas com estudos que situam a pintura histórica e socialmente na busca de desvelar contextos específicos da produção artística, ou ainda, uma análise ideológica das representações ali contidas. Na primeira missa, ('segunda' missa conforme registros históricos) Victor Meirelles consegue reproduzir na tela a exuberância da natureza maravilhosa, as atitudes dos representantes da coroa portuguesa e dos índios nativos diante da celebração presidida por Frei Henrique de Coimbra. O ambiente, as cores e os personagens formam um conjunto repleto de significações.


Incursão pela primeira missa
Está registrado nos estudos sobre a Primeira Missa e Victor Meirelles a importância das Cartas de Pero Vaz do Caminha, narrador dos feitos da expedição colonizadora.
Araújo Porto Alegre, contemporâneo do pintor recomendava, conforme Franz: “Leia cinco vezes o Caminha, que fará uma coisa digna de si e do país” (2003, p. 87). Sem pretender fazer uma ligação linear e mecânica entre a pintura e os textos de Caminha, parece significativo apontar que tanto das cartas, como da pintura de Meirelles transparece um espaço-tempo singular no qual se dá um grande acontecimento. É mais que um local, ou território, mas um espaço-tempo diferente:
Diz a carta :
E hoje que é sexta-feira, primeiro dia de maio, pela manhã, saímos em terra com nossa bandeira; e fomos desembarcar acima do rio, contra o sul onde nos pareceu que seria melhor arvorar a cruz, para melhor ser vista Passamos o rio, ao longo da praia; e fomos colocá-la onde havia de ficar (..)(Carta a El Rei 1963)

É nesse espaço-tempo que ocorre a ambientação da primeira missa. Ela ocorre perto da praia, no litoral. Isso sugere uma paisagem de múltiplas possibilidades conceituais. O litoral é transbordante: apresenta o encontro de heterogêneos: mar e terra. Permanência e movimento. Diferentes que se encontram e desencontram num tenso e denso movimento de fronteiras.
Vários atores co-habitam essa paisagem. São religiosos, soldados, índios nativos, junto a uma natureza paradisíaca. Ali ocorrerá algo insólito. Outro fragmento de Caminha nos ajuda a descrever a cena:

Plantada a cruz, com as armas e a divisa de Vossa Alteza, que primeiro lhe haviam pregado, armaram altar ao pé dela. Ali disse missa o padre frei Henrique, a qual foi cantada e oficiada por esses já ditos. Ali estiveram conosco, a ela, perto de cinqüenta ou sessenta deles (...) (Carta a El Rei 1963)

A pintura de Meirelles traduz pictoricamente essa experiência. no qual prevalece um ambiente mítico-religioso. Presidindo a tudo está o símbolo maior : a cruz .
Meirelles retrata a Cruz com solenidade. Ela não é apenas um objeto material. A terra já conhecida de uns e desconhecida de outros está sendo consagrada pela cruz. Aquele espaço será de agora em diante, um espaço consagrado. Um espaço hierofânico. Como salienta Eliade “na geografia mítica, o espaço sagrado é o espaço real por excelência”(1996 p. 36). Poderíamos dizer o mesmo dessa sacralização de espaço pela Cruz ?
Eliade (1992) nos auxilia nessa compreensão e afirma que nas diversas religiões presentes na história, o homem religioso percebe o espaço de modo qualitivamente diferente. Essa percepção remete a uma experiência primordial que corresponde a uma “fundação do mundo”. Com essa experiência se permite uma espécie de constituição do mundo, porque é ela que descobre o “ponto fixo”, o eixo central de toda orientação futura. Ali onde houver a manifestação do sagrado funda-se ontologicamente o mundo. Fundar significa fixar limites, ordenar o caos, torná-lo um cosmo consagrado. E isso ocorre através da tomada de posse ritualística que permite a habitação de território já habitado por outros seres humanos. Eliade esclarece assim que:

da perspectiva das sociedades arcaicas, tudo o que não é “o nosso mundo” não é ainda um “mundo”. Não se faz “nosso” um território senão “criando-o” de novo, quer dizer, consagrando-o. Esse comportamento religioso em relação a terras desconhecidas prolongou se, mesmo no Ocidente, até a aurora dos tempos modernos. Os “conquistadores” espanhóis e portugueses tomavam posse, em nome de Jesus Cristo, dos territórios que haviam descoberto e conquistado. A ereção da Cruz equivalia à consagração da região e, portanto, de certo modo, a um “novo nascimento”. Porque, pelo Cristo, passaram as coisas velhas; eis que tudo se fez novo” (II Coríntios, 5:17). A terra recentemente descoberta era “renovada”, “recriada” pela Cruz. (1992, p.22)

Meirelles retrata esse acontecimento fundante e ordenador através do lenho de madeira que rasga o céu e a terra. É através da Cruz que acontece a comunicação com entre céu e terra, ao mesmo tempo, que todo o Universo é salvo. Para Eliade : "a noção de 'salvação' apenas retoma e completa as noções de renovação perpétua e de regeneração cósmica, de fecundidade universal e de sacralidade, de realidade absoluta (..) de imortalidade”(1996 p. 163).
O simbolismo da cena na qual gravita a obra de Meirelles conduz o nosso olhar e nos faz repensar esses elementos. A cruz é, notadamente, um vínculo entre o céu e a terra; dotada de uma simbologia vigorosa no sentido mítico-religioso cristão, fortemente educativo. Mircea Eliade (1996), destaca a força do simbolismo da cruz em diversas culturas e descreve como os símbolos religiosos se mesclam.Ao abordar a questão da experiência mística produzida pelas religiões ele propõe a idéia de que a experiência mística dos cristãos, implica na redescoberta da condição paradisíaca primordial existente. Não estariam esses aspecto contemplados na obra de Meirelles, ao traduzir um ambiente paradisíaco na sua primeira Missa?
Aos pés da Cruz Meirelles retrata um ritual religioso de grande vigor educativo: o sacrifício da missa. Conforme registros históricos Frei Henrique de Coimbra, frade franciscano (representante da utopia franciscana e da primeira experiência educacional no Brasil) “diz” a missa. Meirelles retrata-o com os paramentos e vestes sacras da época. As vestes brancas remetem à possibilidade de todas as cores, mas também à pureza, ao perdão dos pecados. A brancura das vestes se mistura ao dourado que revela o esplendor da realeza e do poder divino/profano. Enquanto se diz a missa, um frade Franciscano auxilia no ritual. Outros rezam copiosamente. Estão caracterizados com as vestes próprias da congregação franciscana, de cor marrom, e estão devidamente tonsurados.( A tonsura, era um corte circular, rente, do cabelo, na parte mais alta e posterior da cabeça, com significado de consagração.)
Na missa, Frei Henrique é representante da realeza humana, mas também divina. Teologicamente, como celebrante, é um “outro Cristo”. Enquanto celebrante Frei Henrique é o sacerdote que apresenta diante do altar um novo sacrifício, não de animais mas, do cordeiro imolado, sacrifício eterno e permanente em nome da humanidade”. O Cristo desce aos infernos para salvar Adão, isto é, para salvar o homem derrotado pelo pecado. Mas a mesma teologia da cruz indica que a morte não prevaleceu. O Cristo Ressuscitou. E como sinal de ressurreição surge a dimensão de valorar o tempo histórico como expressão da intervenção divina. A eternidade é transformada em história. É daqui que emerge a missionariedade e o mandato: “Ide e Evangelizai e pregai o evangelho a toda criatura”. Esse preceito religioso coordena como eixo central o imaginário religioso cristão e, por decorrência, também o cultural, político-econômico da história colonial.
Meirelles retrata a presença de vários integrantes na cena: soldados e tripulação da coroa portuguesa congregam-se às voltas do altar. O poder profano se integra ao religioso. Há que se lembrar que o olhar colonizador está ancorado na tradição teocêntrica. E nessa tradição, tudo se relacionava ao divino. A natureza é criada por Deus, mas, também a sociedade reflete essa ordem natural. Desse modo, o pensamento social e político reflete essa idéia da existência de uma ordem universal (cosmos) e natural que abrange os homens e todas as coisas. Tanto o mundo humano físico como o humano, a sociedade não eram compreendidas sem esse “telos, (a essa causa final, no registro aristotélico). E se Deus é a fonte da realidade (o primeiro motor na linguagem aristotélica), Ele tem o primeiro lugar na hierarquia social: rei, clero, nobreza, povo e a partir de então, também os indígenas serão incorporados nessa perspectiva.
Meirelles retrata as atitudes dos índios nativos, de forma diversa. Alguns mais próximos, outros mais dispersos. Parecem tranqüilos, alguns curiosos. Uma mãe amamenta o filho. Outros estão presenciando o acontecimento em cima de uma árvore. Outros ainda comentam o que vêem. São homens e mulheres de pele avermelhada, e que andam nus.
Nos registros de Caminha os índios estão nus “sem nenhuma cobertura, nem estimam nenhuma coisa cobrir, nem mostrar suas vergonhas, e estão acerca disso com tanta inocência como têm em mostrar o rosto” (Carta a El Rei 1963).
Meirelles deixa transparecer com sutileza esse encontro/desencontro com a nudez indígena que tanto inquietou e surpreendeu os colonizadores. Note-se que a nudez é a expressão de um olhar específico para esse “Outro” diferente. Nudez que sugere também numa perspectiva mítico-religiosa: o não conhecimento do pecado. Essa nudez primitiva aponta para inocência de Adão antes da queda. Eliade (1996 p. 156) cita Cirilo que, ao abordar a nudez batismal, diz “Estáveis nus diante do olhar de todos sem sentir vergonha. É que na verdade possuís em vós a imagem do primeiro Adão que estava nu no Paraíso, sem sentir vergonha”.
É nesse contexto que se dá a busca dos navegadores que encontraram um “novo mundo” expressão usada para designar novas terras descobertas, não só porque eram até então ignoradas pelos europeus da época, mas porque, conforme Franz “parecia que o mundo se renovava naquele verde sem fim, onde reinava primavera eterna, era como o reencontro do lugar onde inicia a Criação, ou seja, era a “Visão do Paraíso” reencontrado” ( 2003, p. 95).
Ao sugerir o ambiente e a paisagem paradisíaca a pintura de Meirelles nos remete portanto, a um conjunto de elementos míticos fundacionistas, que compõe o mito fundador do Brasil. Parece-nos ainda que essa obra, passiva de múltiplas leituras, é reveladora de outras direções. Uma delas provém da própria leitura mítica que nos remete para uma espécie de “além-sentido”, da própria imagem.
Concordamos com Marcos Ferreira Santos (2002, p.136) o qual, ao tratar da narrativa mítica afirma : “A imagem e os símbolos, a imaginação, a "louca da casa", entram pela porta dos fundos, (...). Na mesma medida em que a narrativa mythica seja escanteada e tente-se substituí-la pelo discurso, pretensamente neutro e objetivo das ciências, outras formas de iniciação mythica parecem funcionar”.
Longe de advogar irracionalismos parece que a imagem paradisíaca proporciona uma possibilidade de potencializar um conceito formativo clássico da literatura educacional que é a noção de utopia, não como fantasia, ilusão ou quimera. Mas como u-topos, um “não-lugar” mobilizador.
Quem já não se sensibilizou com as utopias clássicas da República Platônica; com a Cidade do Sol, de Campanella; com a Utopia de Tomas Morus, com as propostas socialistas de Fourier, de Proudhon, ou então com a sociedade sem classes de Marx? Quem já não se sensibilizou com a erótica de Marcuse, com a liberdade de Fromm, com o ponto de Mutação de Capra, com a amorosidade autopoiética de Maturana e Varela e tantos outros?
No entanto, em tempos em que a era do vazio toma conta do social, do cultural, do político, do educativo, também a noção da utopia degenera-se facilmente em utopismo da moda.
Talvez seja preciso desterritorializar a noção de utopia para alcançá-la em outras margens, em outros encontros significativos. Se a utopia pode permanecer apenas no estágio de aspiração ou sonho genérico, ela pode também ir além.
Boaventura de Souza Santos propõe uma interessante noção :

''A utopia é a exploração de novas possibilidades e vontades humanas, por via da oposição da imaginação à necessidade do que existe, só porque existem em nome de algo radicalmente melhor que a humanidade tem o direito de desejar e por que merece a pena lutar. A utopia é uma chamada de atenção para o que não existe como (contra) parte integrante, mas silenciada, do que existe.(...) . (SANTOS 1997, p. 324).

Contudo, conforme Santos (1997), as duas condições de possibilidade de utopia são uma nova epistemologia e uma nova psicologia. Isso significa que a nova epistemologia deve se abrir para novas possibilidades formativas no sentido amplo e deve pois, rasgar o horizonte de possibilidades e criar alternativas. Nessa configuração epistêmica, o autor propõe como tese central uma revisão paradigmática do que se entende por conhecimento devido à crise “ad intra” da própria ciência e aos limites das ações humanas realizadas em nome do mesmo conhecimento. Santos (2004 a) propõe uma noção de ciência que se contrapõe à perspectiva vigente na qual estamos todos envolvidos. Esse novo “modelo”, é enunciado como um “paradigma emergente para uma vida decente” .
Essa nova epistemologia proposta parte da arqueologia do presente. Quer-se escavar sobre o que não foi feito e compreender por que não foi feito. A escavação é orientada para os silêncios e silenciamentos, para as vozes suprimidas, para as margens. Para Santos (2004a), “todo conhecimento é auto-conhecimento”. A ciência moderna consagrou o homem enquanto sujeito epistêmico, mas expulsou-o, tal como a Deus, enquanto sujeito empírico. Um conhecimento objetivo e vigoroso não tolerava a interferência de outros valores. Foi com base nisso que se construiu as dicotomias sujeito/objeto, natureza/cultura. Para o autor, essa distinção, toma exemplo nas ciências sociais, na qual a distinção entre o europeu civilizado, como sujeito, e os povos primitivos colonizados, como objetos, resultaram nos grandes epistemicídios da qual nossa história não é exceção.
Para Santos (2004b), a concepção de pós-modernidade, que ganhou certo fôlego nos últimos tempos, também na área da educação, não dá conta do contexto atual. As concepções dominantes, ainda que representadas por grandes pensadores, assumem as características de crítica das grandes narrativas sobre a universalidade da história traduzida em conceitos como progresso, desenvolvimento ou modernização que funcionam como totalidades hierárquicas; renúncia a projetos coletivos de transformação social, sendo a emancipação social considerada devaneio sem consistência; celebração, por vezes melancólica, do fim da utopia, do cepticismo na política e na estética, concepção da crítica como desconstrução; relativismo ou sincretismo cultural; ênfase na fragmentação. De acordo com o autor, essas caracterizações são incompletas e para identificar as principais diferenças em relação à concepção de pós-modernismo de oposição que defende, ele propõe :

“Em vez da renúncia a projetos coletivos, proponho a pluralidade de projetos coletivos articulados de modo não hierárquico por procedimentos de tradução que se substituem à reformulação de uma teoria geral de transformação social. Em vez de celebração do fim da utopia, proponho utopias realistas, plurais e críticas. Em vez de renúncia à emancipação social, proponho a sua reinvenção. Em vez da melancolia, proponho o otimismo trágico. Em vez do relativismo, proponho a pluralidade e a construção de uma ética a partir de baixo. Em vez de desconstrução, proponho uma teoria critica pós-moderna, profundamente auto-reflexiva mas imune à obsessão de desconstruir a própria resistência que ela funda. Em vez do fim da política, proponho a criação de subjetividades transgressivas pela promoção da passagem da ação conformista à ação rebelde. Em vez do sincretismo acrítico, proponho a mestiçagem ou a hibridação com a consciência das relações de poder que nela intervêm, ou seja, com a investigação de quem híbrida quem, o quê, em que contextos e com que objetivos. (SANTOS: 2004b, p. 10).


É com essa dimensão que o autor propõe a nova psicologia formativa,ou seja, deve-se recusar uma subjetividade conformista ou niilista; daí a necessidade de estimular indivíduos e grupos sociais para lutar pelas alternativas criadas. Para isso que se reabilitem os sentimentos e paixões como forças mobilizadoras; e que a ciência possa se diluir no reino da arte. Essa nova psicologia formativa deve estar sempre alerta uma vez que, conforme Santos : “Não basta criar um novo conhecimento, é preciso que alguém se reconheça nele. De nada valerá inventar alternativas de realização pessoal e coletiva, se elas não são apropriáveis por aqueles a quem se destinam” (1997, p. 333)
Conforme o autor “não é tarefa fácil nem uma tarefa individual. Mas se é verdade que a paciência dos conceitos é grande, a paciência da utopia é infinita”. (SANTOS, 1997, 346)
Há certamente na formação humana uma dimensão notoriamente utópica no sentido em que foi modestamente apontado. Quem sabe a pintura de Meirelles possa sugerir a muitos educadores e educadoras esse encontro da arte, com uma energia revitalizadora de uma nova utopia.


REFERENCIAS



Carta a El Rei D. Manuel, Dominus: São Paulo, 1963.
Disponível em www.bibvirt.futuro.usp.br> Digitalizado por NUPPIL http://www.cce.ufsc.br/~alckmar/literatura/literat.html. Acessado em junho 2010.


ELIADE, M. Imagens e Símbolos. Ensaios sobre o simbolismo mágico-religioso. São Paulo:Martins Fontes, 1996 .

__________. O sagrado e o profano. [tradução Rogério Fernandes]. São Paulo: Martins Fones, 1992.

FRANZ, T. S. Educação para uma compreensão crítica da arte. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2003 .

IGLESIAS, Tania Conceição. Achados sobre a utopia Franciscana. Jornal da Unicamp. Campinas, 7 a 13 de junho de 2010 - ANO XXIV - Nº 464 Disponível em http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/junho2010/ju464_pag12.php. Acesso em 01 Julho de 2010.
SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências. Porto: Afrontamento, 1987.
_________________. Pela mão de Alice. O social e o político na pós-modernidade. 3 ed. São Paulo, Cortez, 1997.
_______________. (org) Conhecimento Prudente para uma vida decente. Um discurso sobre as ciências revisitado. São Paulo. Cortez, 2004 a

_______________. Do pós-moderno ao pós-colonial. E para além de um e outro. In: Conferência de Abertura do VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais. Coimbra: CES, 16/09/2004 b. Disponível em: http://www.ces.uc.pt/misc/Do_pos-moderno_ao_poscolonial. pdfUTH. Acessado em 03 julho de 2010P
P .

SANTOS, Marcos Ferreira. Mytho e Antropologia da Educação. Cad. Educ. FaE/UFPel, Pelotas (18): 135 -152,jan.ljun. 2002.
Disponível em http://www.marculus.net/textos/mito-antrop.pdf . Acesso em 01 julho 2010.









Transfiguração estética, dois modelos de formação


RODRIGO MAFALDA


Schopenhauer e Nietzsche

Transfiguração estética, dois modelos de formação.

Para Schopenhauer o momento estético representa a consolação positiva que ele oferece ao homem que vive sob o império do tempo e da dor (o mito de Íxion).

Schopenhauer quer nos fazer “viver a eternidade” saborear alguns momentos tranquilos fora do inferno da vontade(Roda de Íxion). É um momento de suspenção mais que de fruição a estética dele. É o sujeito cognoscente puro, liberto da vontade, da dor e do tempo, que na contemplação arranca o objeto de sua corrente fugidia dos fenômenos que caracteriza a visão libertadora de Schopenhauer. É a característica de um filósofo-educador por excelência. Pois a arte para ele é a contemplação desinteressada das coisas em sua essência, isto é, contemplação das ideias e por meio da música contemplação da vontade ela mesma.

Ideia, no entanto, se opõe à noção de conceito que conhece a relação entre os objetos, mas não os objetos eles mesmos (o mundo das ideias de platão). Suspenção, contemplação da objetividade é a característica da genialidade requerida nos meios formativos para Schopenhauer. Deste modo ele, assim como muitos outros filósofos de gabarito, atribui à arte a mesma missão que atribui à santidade ascética e a filosofia pessimista, isto é, a libertação da ilusão que constitui o mundo da representação, a manifestação de sua essência profunda que é o desejo e, enfim, a libertação da servidão do querer-viver graças a contemplação (alçar o sublime). Este tipo de contemplação é um prazer calmante aponta Nietzsche, e é na trilha do “estado de alma religioso” que Nietzsche se refere a estética de Schopenhauer.

De qualquer forma Nietzsche se opõe a ele no que concerne à relação entre sensualidade e condição estética. Pois para Schopenhauer, a contemplação estética (a própria ética da compaixão) é o contrário absoluto de uma vida dominada pela vontade, cujas a sedes mais fortes são a sensualidade e a sexualidade, que resulta no egoísmo, o algo ruim e violento (nesta perspectiva “a tragédia” é a forma e o modelo absurdo da vida movida pela afirmação da vontade).

Nietzsche no entanto afirma que “a sensualidade não seria suprimida a partir do instante em que se manifesta a condição estética, mas somente transfigurada de maneira a não mais aparecer na consciência como excitação sexual”. Deste modo Nietzsche se coloca a favor de uma “fisiologia da estética” contra uma “metafísica da estética” como a do seu mestre Schopenhauer.

A percepção e o modelo aqui formativo é então sensação, sensualidade e sensibilidade. Há sempre um elo entre arte e sensualidade. A arte se impõe ao ideal ascético de negação da vontade, e segue a toda a visão pessimista do mundo como um estimulante de uma vontade de potência, por exemplo, do aluno de ser ele mesmo.

A arte ou a educação como calmante (remédio) e desinteressada é uma arte fraca, aos olhos da filosofia trágica de Nietzsche, é reativa, uma arte moralizante em essência, niilista e decadente, uma inversão dos valores. Um empobrecimento da energia vital é o que comanda esse tipo de gênero de arte, também como fundamento da educação[1].

Nietzsche vê na arte o grande estimulante da vida. A arte é essencialmente aprovação, divinização da existência. Não há arte pessimista talvez, pois a arte diz “sim”, um “eu quis assim” afirma Nietzsche em seu fragmentos póstumos 1888-1889. E abusa da ideia de uma vontade de poder como primeira fonte de todo fenômeno.

Pois a arte deve sobretudo embelezar a vida, deve em seguida dissimular ou reinterpretar toda a feiúra. O homem que cria obras de arte, ele o faz porque sente em si uma superabundância dessas virtudes de embelezamento, de ocultação e de reinterpretação (da roda de Íxion).

Aqui a formação para Nietzsche, é uma formação, de modo específico do artista, daquele que transfigura sem cessar, e principalmente todas as coisas, todas as situações que têm a reputação de dar ao homem o meio de se sentir bom ou grande, bêbado ou alegre, ou são e sábio, falou Nietzsche na sua obra Gaia ciência, aforismo 85. A alegria de existir são as condições para a atividade artística.

Assim em outros termos uma tendência “clâssica” sustenta Nietzsche, e tal tendência alimenta uma visão de futuro, se apoia na força e no vigor de sua época, pois na fraquesa se apoiou Schopenhauer um espírito e ícone de uma tendência “romântica”, que considera a arte como uma ponte em direção à negação da vida, vida essa como absurda.

Uma antecipada conclusão:

Mas essa vida à parte do artista, este como exceção, como criador e criatura, como auto-formador - ficaremos no dilema - segundo Nietzsche, é uma certa ascese “uma maneira de ser surdo, de cer cego para tudo que é exterior”. Característica suprema apontou Nietzsche em sua obra “Schopenhauer Educador” sua, e do mestre e gênio Arthur Schopenhauer.

Temos abaixo e como “pano de fundo” pressuposições e questionamentos bases sobre educação e formação. Temos uma indicação geral: “a educação contra a violência, é a favor da saúde do corpo (indivíduo) e do espírito (cultura) do outro e de si mesmo”.

Acertiva 1° - Não há como extinguir (cessar de queimar) e eliminar a violência sem cessar a própria vida.

Logo, uma questão: Há como suprimir (purificar) ao máximo?

Acertiva 2º- É preciso reorientar a questão:

Logo, uma questão formativa: Quando que suprimir a violência pode significar aumentar a violência?

Obs.: “aumentar a violência” aqui tem dois sentidos bem reconhecidos: a) de quem com violência acalma a violência de outro; b) ou de potencializar com o ímpeto de suprimir, aumentar a violência no próprio indivíduo.

No primeiro caso implica “matar”, cansar e derrotar o indivíduo, apaziguar sua vitalidade, torná-lo dócil (adestrar como um cão). No segundo caso, potencializar a violência significa torná-lo pior do que já era, (brutalizar os instintos do “cão” a tal ponto, que o resultado futuro é um fulminante e irreparável ataque de fúria e desmedida, de loucura) também como consequência de uma escolha e culpa passada, o próprio indíviduo com ele mesmo (movimento psicológico violento).

Comentário: Quando não sabemos o que fazer... e o que fazer? Suponho, é o caso do que estamos vivendo, os indivíduos em massa preferem o primeiro caso, isto é, “derrotar” o indivíduo. É mais prudente e seguro, mais confortável, mais “justo”. Mais justo?

De qualquer modo, isso só potencializa a violência futura, ela anda por gerações por uma corrente submersa chamada “vontade”. Seja por uma vontade cega (pessimista) ou de poder (trágica) ela esta aqui e aí. Como diz meu ex-professor famoso Silvino (CFH-UFSC): “o problema... não é a falta de administração (de gestão e educação) é de que tudo é muito administrado”. A ponto de sufocar eu receio. A ponto de aumentar a violência.

O mito de Íxion

Íxion, filho de Flégias, descendente do deus-rio Peneu foi rei dos Lápitas, um povo que habitava a Tessália, próximo aos Montes Pindo montes Pélios e Monte Ossa. Tendo-se apaixonado por Dia (ímpeto sexual), filha de Dioneu, prometeu-lhe seus cavalos em troca da mão de sua filha. Após o casamento, Íxion negou ao seu sogro os cavalos que lhe havia prometido, ao que este reagiu com a tomada à força do que lhe era devido, fazendo com que Íxion jurasse vingança.

Não tendo conseguido decidir entre a morte e o sofrimento para seu sogro, Íxion optou por ambos: construiu uma câmara incendiária e camuflou-a em sua casa como um cômodo. Dioneu, tendo aceitado um convite de Íxion para uma reconciliação dirigiu-se à casa deste e caiu em sua armadilha. Enquanto era incinerado, seus gritos de desespero levaram Íxion ao arrependimento, mas era tarde. Ao abrir a porta da câmara, Íxion se deparou com o corpo carbonizado de seu sogro.

Após seu crime, o remorso fez com que Íxion enlouquecesse, e sua loucura o fez errar pelo mundo como mendigo. A única maneira de recobrar a sanidade seria submetendo-se a uma purificação para a expiação do crime, porém ninguém conhecia o ritual próprio para o caso, já que nunca antes ninguém havia assassinado um membro de sua própria família[2].

Ao ver o sofrimento de Íxion, Zeus apiedou-se. Restitui-lhe a sanidade e convidou-o a partilhar do banquete dos Deuses, convite que foi prontamente aceito pelo mortal.

Tendo-se embriagado pelo néctar, Íxion passou a assediar a esposa de seu anfitrião, a própria Hera. Esta, ao perceber as intenções do visitante alertou seu esposo a respeito das intenções de seu convidado.

Ao que parece Zeus encontrava-se com um bom-humor anormal neste dia, pois, em lugar de irritar-se, achou divertida a situação, e para testar seu hóspede forjou um simulacro de sua própria esposa usando uma nuvem (Néfele), e deixou-a a sós com Íxion, que a possuiu.

Segundo a mitologia grega, desse conúbio nasceu a raça dos Centauros, metade homens, metade cavalos. Todos os Centauros são descendentes de Íxion, exceto Quíron (preceptor de Aquiles entre outros) e Folo amigo de Héracles. Nessa linhagem oposta a Quíron e a Folo, os centauros também são o símbolo das constantes tragédias, da violência e da desmedida contidas em vários mitos[3].

Porém, o grande furor de Zeus é que, após ter possuído Néfele crendo ser esta Hera, Íxion despediu-se dos Deuses e voltou para o mundo dos mortais, tendo chegado, divulgou para os primeiros mortais que encontrou que havia possuído a esposa do próprio Zeus. Este, enfim, irritou-se ao ver a possibilidade de angariar a fama de ter sido traído por um mortal. Imediatamente Íxion foi fulminado por um raio e lançado no Tártaro, onde foi preso a uma roda em chamas e condenado a nela girar pela eternidade.

Depurando o Mito, fundamento filosófico contra a violência (uma interpretação)

Razão e Arte

Educação e Formação enquanto contemplação (objetividade) e negação da vontade (ascetismo).

Como resumo, o mito de Íxion (rei dos Lápidas, e depois do conúbio com a nuvem (Néfele) pai dos Centauros) reserva um acúmulo de violência e crimes, como perjúrio, assassinato e sacrilégio. Podemos dizer, um mortal acúmulo contemporâneo de ingratidão e traição, contra outros e contra si mesmo.

Por exemplo, ingratidão reservou à si, perante suas promessas de presentes ao Sogro Dioneu em troca da mão da sua filha Dia, que acabou morto por incineração por Íxion. Traição e ingratidão reservou à si também, diante do próprio convite e purificação de Zeus, quando ao gabar-se de ter seduzido a própria Hera (esposa de Zeus). De fato, narra o mito, diante de sua culpa e assassinato do sogro foi desprezado por todos na comunidade, depois da desmedida e loucura mental, de mendigo teria sido salvo por Zeus (que estava de bom humor). Podemos afirmar que, mesmo diante de seu desmedido ato, ganhou em uma das versões do mito “divina purificação”. Ironicamente, seu privilégio se tornou sacrilégio (em meio aos deuses) e sua pena por seus crimes se tornou eterna.

No nosso caso e para Schopenhauer, a “Roda de Íxion” assim como a vida e o próprio “devir” é a roda em movimento, que roda sem parar, é o rio que corre de Heráclito. Íxion está amarrado, assado constantemente ao fogo. No nosso caso aqui, a ser interpretado através da filosofia de Schopenhauer (filosofia do pessimismo), essa representação tem o devido significado, a roda que é a vida gira sobre o fogo que é a dor (acontecimento como dado no presente e no corpo). [4]

Aqui, no entanto o termo apropriado para o fogo é a dor, e a DOR é positiva, não no sentido de bom ou ruim como resultado futuro (marca do otimismo que se equipara a um determinado masoquismo), pois a dor para Schopenhauer, o próprio sofrimento é positivo enquanto constante e real (enquanto vontade). A felicidade e a alegria é que são momentâneas e até porque não dizer, ilusões dos sentidos (um estratagema que tem como finalidade apenas a espécie). A precariedade do indivíduo se instaura como movimento da própria vontade que se liga teleologicamente com a preservação da espécie não propriamente do indivíduo.

Porém, a solução para o sofrimento é o sublime momento em que o conhecimento e a arte, por exemplo, suprimem e param a “Roda de Íxion”, a própria vontade de vida, do querer e das paixões. O ímpeto subjetivo, egoísta e individual a favor de uma dimensão contemplativa e objetiva é a salvação constatada por Schopenhauer (uma visão oposta à “filosofia trágica” de Nietzsche).

Para Schopenhauer, na sua “filosofia do pessimismo” por excelência:

A todo plano se opõem um sem-fim de dificuldades e problemas; a cada passo aumentam os obstáculos. Quando finalmente tudo foi transposto e alcançado, nada pode ser ganho se não a libertação de algum tipo de sofrimento, ou de algum tipo de desejo, portanto encontramo-nos na mesma situação anterior ao aparecimento deles. Só a carência e a dor nos é dada imediatamente” [5]

”Toda satisfação, ou aquilo que comumente se chama felicidade, é própria e essencialmente falando NEGATIVA, jamais positiva, pois o desejo, isto é, a carência, é a condição prévia de todo o prazer. Eis por que a satisfação ou o contentamento nada é senão a liberação de uma dor, de uma necessidade...” [6]

Lembremos que a ética nasce como trabalho (inclusive educacional) de uma sociedade para delimitar e controlar a violência, isto é, o uso da força contra outrem. A violência é busca desenfreada dos desejos, satisfação egoísta das vontades do indivíduo que quer. Podemos ver através de toda história da filosofia, que a filosofia moral se ergue como reflexão contra a violência. Neste sentido lutamos contra uma violência ao outro enquanto: assassinato, tortura, suplício, escravidão, crueldade, mentira, etc. E contra nós mesmos enquanto: passividade, preguiça, covardia, ódio, medo, adulação, inveja, remorso, etc.

Nessa concepção também estética-ética toda educação ou formação se fundamenta em uma luta contra o egoísmo, contra a vontade, como uma negação da vontade mesma, uma luta contra os apetites da carne e do ímpeto sexual como impulsos de origem e ordinários da paixão de modo geral. Nessa concepção a razão, o conhecimento, o intelecto e a própria fruição estética e artística são os meios absolutos de uma luta integrada “contra o corpo” que quer sem saber o que quer.

objetivausões dos sentidos. É oe sua negaç contra o corpo que quer.

“Segundo Schopenhauer, nesse mundo em que “o homem só é capaz de se decidir após a escolha” a única liberdade possível será a negação da vontade. Em uma vontade que é “um desejo incapaz de uma satisfação última”, a única liberdade é a negação, a distância da necessidade fenomênica.” [7]

Em outra citação também podemos compreender sua noção da vontade, e a necessidade de sua negação:

“O homem descobre em seu corpo, a imagem de uma vontade cega que compartilha com os outros seres vivos. Essa força obscura vital é o aspecto do mundo que não pode ser reduzido à Representação, é o mundo enquanto Vontade” [8]

Aqui o drama do amor “O Gênio da espécie”, explica bem o que significa a necessidade de negação. Pois o próprio “amor” e o “egoísmo” são marcas fúnebres da vida humana, é o que caracteriza propriamente a “afirmação da vontade” (termo central que será retomado por Nietzsche como “vontade de potência”). Para Schopenhauer a vida ordinária, a vida de quase todos os homens se resume ao corpo, sua necessidade, a um dizer sim ao desejo e ao sofrimento na busca das necessidades corporais. Seu triunfo sexual (do homem) caracteriza essa afirmação. A vontade de viver se afirma energeticamente no ato da procriação. Segundo Brum:

“É na “Metafísica do amor” que Schopenhauer deve tamanha parte de sua celebridade. O amor aparece como ardil do gênio da espécie. O instinto sexual aparece como a “sede da vontade” e Schopenhauer demonstra que no amor a Natureza utiliza o indivíduo para seu interesse principal: a conservação da espécie. O âmbito do instinto sexual é aquele em que o caráter humilhante da opressão da vontade se manifesta de maneira praticamente visível. O “instinto sexual” são essencialmente “máscara e estratagema” o que na realidade é apenas vantagem para espécie, do mesmo modo que é para espécie que ele trabalha quando imagina trabalhar para ele mesmo.”[9]

Dizendo isso Schopenhauer está preocupado em demonstrar que a vida – enquanto vontade de viver - é uma escravidão que se repete necessariamente. O exemplo da sexualidade (se diga do próprio amor) revela o caráter opressivo e necessário da vontade, o prazer como estratagema[10].

Para Schopenhauer em suas pressuposições biológicas a nutrição e a reprodução incessante não diferem da geração e a excreção não difere da morte, senão quanto ao grau.

“O reino vegetal apresenta-nos o primeiro caso, sob forma fácil de ser compreendida. A planta por sua natureza é uma repetição constante, afirma ele, da mesma semente, da sua fibra mais simples que se dispõe em folhas e ramos: é um agregado sistemático de plantas semelhantes que se sustêm umas às outras e cuja única tendência é a reprodução indefinida. É com esta finalidade que a planta se transforma, grau a grau, em flores e em frutos que reassumem a seu turno toda a sua existência e todas as suas tendências; atinge desta sorte pelo caminho mais curto aquilo que era sua mira constante, realizando de um só golpe e em exemplares inumeráveis, o que até então só realizava em pormenor, isto é, a sua multiplicação. Seu desenvolvimento até à frutificação tem relação com o fruto, assim em analogia, como a escrita tem relação com a imprensa.”[11]

O homem, escravo da vontade e de suas paixões, pode libertar-se, por alguns instantes - sem ser necessariamente um santo ou asceta – através da contemplação estética, subterfúgio ético também assinala Schopenhauer. Visão e imagem superior que tem do homem, e que tem de si mesmo, uma visão de sua própria genialidade. Mesmo que reste ainda a “arte” como um caminho de resistência contra a vontade, como meio de solução para Schopenhauer diante da vontade cega da “roda de Íxion”, nessa sublimação desinteressada aos moldes de Kant. Recusada por Nietzsche. No caso do intelecto (razão), Schopenhauer tem uma conclusão mais pessimista. Devemos perguntar: Qual é a possibilidade do abandono do egoísmo através da razão?

Na maioria dos casos, a “razão” pode ser apenas “instrumento clássico” da vontade. Por várias vezes ele indica o caminho “instrumental” da razão como meta do egoísmo e da satisfação dos desejos do indivíduo. Não se aplica aqui a Schopenhauer, por exemplo, a idéia que Pascal tem sobre “a razão”. Não podemos afirmar de maneira otimista seus dois movimentos, o da consciência e o do coração como fez Pascal.[12]

O caso é que nos encontramos em contradição, pois, essa possibilidade de deliberação do indivíduo em direção a uma solução racional é no mínimo fraca, o que é pior, talvez impossível, como um ato ou escolha própria contra as paixões e o egoísmo.

Nessa perspectiva da Vontade como livre (aspecto metafísico da filosofia de Schopenhauer), o indivíduo não escolhe uma solução e pronto (neste caso a educação tem seus limites, e a ética ou a educação moral se estabelece por uma via artística mais que propriamente racional).

Este tipo de razão se distingue da ideia Socrática que para errar é preciso ser ignorante, e que para bem viver basta o conhecimento do que é certo (do bem e da justiça). De fato, esse movimento de negação da vontade é um impulso da própria vontade para Schopenhauer, não é uma deliberação do indivíduo que conhece e então escolhe. Repetindo a citação acima onde segundo Schopenhauer, nesse mundo em que “o homem só é capaz de se decidir após a escolha” por isso “a única liberdade possível será a negação da vontade”. E que “em uma vontade que é um desejo incapaz de uma satisfação última, a única liberdade é a negação, a distância da necessidade fenomênica (da representação)”.

Por exemplo, como bem resumiu Marilena Chaui[13], o que chamamos de “mundo” ou “realidade”, diz Husserl (filósofo contemporâneo), não é um conjunto ou um sistema de coisas e pessoas, animais e vegetais. O mundo ou a realidade é um conjunto de significações ou de sentidos que são produzidos pela consciência ou pela razão. A razão é “doadora do sentido” e ela “constitui a realidade” enquanto sistemas de significações que dependem da estrutura da própria consciência.

Porém para Schopenhauer isso tudo não passa mesmo de “fenomenologia”, do mundo da representação, que sem a Vontade mesma não passa também de uma quimera.

Segundo pressupostos da história da filosofia a fenomenologia afasta-se, portanto, da solução hegeliana e kantiana, pois não admite que as formas e os conteúdos da razão mudem no tempo e com o tempo (Hegel), e em relação a Kant, para Husserl ela não necessita da experiência. Elas se enriquecem e se ampliam no tempo, mas não se transformam por causa do tempo.

No caso de uma “filosofia do pessimismo” o acontecimento é um dado da vontade não do tempo e do espaço que estaria apenas presa no âmbito da representação (principio de razão suficiente). Presa também as diversas individualidades e formas da representação no qual sua realidade e unidade é sempre um dado da vontade.

Toda representação aqui é motivada pelo indivíduo que conhece, mas, a realidade última e primeira conduz a uma idéia irracional da vontade que quer sem saber o que quer.

É fácil entender sua dimensão final e ética, que para Schopenhauer é, estritamente vinculada a uma ideia de “compaixão” como fundamental.

Muitas vezes o que ele pode (o homem) é no máximo reconhecer-se como escravo do desejo (redenção). Pela via da arte, da música (como a maior representante da vontade) procurar sua sublimação, sua redenção. Aqui toda arte e também toda a razão (não instrumental) está em busca de uma resignação ética.

Uma formação séria, crítica, libertadora e genial neste sentido é sempre o ápice da objetividade possível. Mais através da arte do que da própria razão, assim um caminho ético é estético antes de propriamente racional. A estética é o verdadeiro caminho do conhecimento e da sabedoria[14].

A arte e a educação como calmante

“A arte portanto para Schopenhauer tem uma função ascética e redentora. Ela arranca o objeto contemplado do domínio fugidio dos fenômenos e o instala como representante da totalidade do mundo na esfera da contemplação” [15]. Se na esfera do conhecimento, o que importa são as relações entre as coisas (causas e efeitos) na arte o tempo é congelado.

A visão ascética, que concebe a experiência estética como o da afetividade posta em parênteses, faz da arte uma via de salvação.

O pessimista Schopenhauer que, no livro II do Mundo, pintou os horrores de uma vontade cega e sem finalidade, vê a arte como “um calmante que age sobre a vontade cega e eterna, que é sofrimento e dilaceração perpétuos ” . A “roda de Íxion” aqui para. Ainda segundo Brum, a arte como contemplação estética se eleva no sistema de Schopenhauer por sua proposta de via do conhecimento que poderia atingir o “âmago do mundo”.

Schopenhauer ao contrário de Platão, não opõem o artista ao filósofo, e concebe uma missão metafísica para esses dois formadores e tipos superiores: estar “diante da própria existência” ou, como diz Charles Andler, “estar na presença do eterno”. Enfim, na luta moral contra a “roda de Íxion”, contra tudo que nos “desmancha no ar no eterno impulso de desejar e querer”.

Podemos perceber, contra um idéia de “liberdade proposta por Schopenhauer” como essa “roda” ecoa na obra de Nietzsche:

“Contemplando uma cascata, acreditamos ver nas inúmeras ondulações, serpenteares, quebras de ondas, liberdade da vontade e capricho; mas tudo é necessidade, cada movimento pode ser calculado matemáticamente. O mesmo acontece com as ações humanas; poder-se-ia calcular antecipadamente cada ação, caso se fosse omnisciente, e, da mesma maneira, cada progresso do conhecimento, cada erro, cada maldade. O homem, agindo ele próprio, tem a ilusão, é verdade, do livre-arbítrio; se por um instante a roda do mundo parasse e houvesse uma inteligência calculadora omnisciente para aproveitar essa pausa, ela poderia continuar a calcular o futuro de cada ser até aos tempos mais distantes e marcar cada rasto por onde essa roda a partir de então passaria. A ilusão sobre si mesmo do homem atuante, a convicção do seu livre-arbítrio, pertence igualmente a esse mecanismo, que é objeto de cálculo”.

Friedrich Nietzsche, em 'Humano, Demasiado Humano'

Em Anexo(motivo e escolha desta imagem e mito):

3° Dissertação Af. 6 da obra Genealogia da Moral é uma indicação e crítica de Nietzsche aos pressupostos anestésicos da arte segundo Schopenhauer. Nietzsche neste aforisma, faz referência à “Roda de Íxion” apresenta Stendhal (como grande artista) em comparação com Kant, e compara sua percepção estética com a obra de Schopenhauer.



[1] O movimento de oposição estética entre Schopenhauer e Nietzsche é também um movimento e dois modelos de formação opostos.

[2] O assassinato, mesmo involuntário, tornava o assassino impuro. Ninguém podia tocá-lo (o toque contamina...), ou sentar-se com ele à mesa para uma refeição, ou beber em sua companhia, até que fosse submetido a um ritual de purificação.

[3] Os centauros (gr. Κένταυροι) eram seres metade homem, metade cavalo e viviam nas montanhas e florestas. Descendiam de Íxion (e Néfele), rei dos lápitas, povo que habitava próximo aos montes Pélion e Ossa, na Tessália. Embora mantivessem contatos frequentes com os seres humanos, eram brutais e tinham hábitos selvagens. Notáveis exceções eram os centauros Folo, amigo de Héracles, e Quíron, o educador de heróis. A explicação era que esses dois centauros, diferentemente dos demais, não eram filhos de Íxion...

[4] Sei que poderíamos apontar várias idéias a respeito de cada símbolo do conjunto do “Mito de Íxion”, por exemplo, como o fogo, que poderia simbolizar um Deus, uma paixão, como amor e a cólera (porque são ardentes), o conhecimento (porque este é iluminação), e a própria purificação de alguma coisa (como na alquimia). O fogo ainda como o poder sobre a natureza (porque permite o desenvolvimento das técnicas), a diferença entre os animais e os homens (porque estes cozem os alimentos enquanto aqueles os comem crus), etc. E o fogo realmente tem significados diferentes e relativos a cada mito.

[5] Schopenhauer, Arthur, O mundo como vontade e como representação. Tradução, apresentação, notas e índices de Jair Barboza - São Paulo: Editora UNESP, 2005. Livro IV § 58 pag. 411 / O Mundo como Vontade e Representação é a grande obra de Schopenhauer, composta por quatro livros (mais o apêndice da crítica da filosofia kantiana), e publicada em 1819. O primeiro livro é dedicado à teoria do conhecimento ("O mundo como representação, primeiro ponto de vista: a representação submetida ao princípio de razão: o objeto da experiência e da ciência."); o segundo, à filosofia da natureza ("O mundo como vontade, primeiro ponto de vista: a objetivação da vontade"); o terceiro, à metafísica do belo( "O mundo como representação, segundo vista: a representação independente do princípio de razão. A idéia platônica, objeto da arte"); e o último, à ética ("O mundo como vontade, segundo ponto de vista: atingindo o conhecimento de si, afirmação ou negação da vontade"). Toda sua produção posterior pode ser definida como comentários e acréscimos aos temas ali tratados.

[6] Schopenhauer, Arthur, O mundo como vontade e como representação. Tradução, apresentação, notas e índices de Jair Barboza - São Paulo: Editora UNESP, 2005. Seção 58 Pag. 411

[7] BRUM, Jose Thomaz. O pessimismo e suas vontades: Schopenhauer e Nietzsche. Editora ROCCO 1998. Pág.: 36.

[8] Idem. Em O pessimismo e suas vontades José Thomaz Brum produziu uma obra que relaciona a proximidade e o antagonismo entre as teorias filosóficas dos alemães Arthur Schopenhauer e Friedrich Nietzsche sobre a existência humana e suas mazelas. O livro faz uma análise comparativa de um tema comum aos dois filósofos: dor e sofrimento como sentimentos inerentes e inevitáveis à vida humana. Embora semelhantes em algumas situações, os dois pensadores diferem em várias nuances nas formas e resultados que essas mazelas são capazes de causar na existência. Na obra de Schopenhauer (1788-1860), por exemplo, é inegável o espírito negativista e metafísico da vida daí ser considerado o filósofo do pessimismo, já que para ele a existência do homem só se fazia plena no momento de negação da vida. Por sua vez, Nietzsche (1844-1900) o primeiro filósofo trágico transforma o produto de seu conterrâneo para descrever a existência como uma tragédia, criando o conceito de dionisíaco que assimila o sofrer não como um fardo, mas como condição primordial do homem. Para ele, dor e prazer formam a vida, que deve ser vivida tal qual fora criada, e não ignorada. O pessimismo e suas vontades é resultado da tese de doutorado em Filosofia defendida por José Thomaz Brum na Universidade de Nice-Sophia Antipolis, na França, em 1996, que teve como orientador o também filósofo Clément Rosset. José Thomaz Brum produz um belo trabalho, isento, ao mesmo tempo acessível a qualquer pessoa, seja catedrático ou leigo. Basta ser homem e pretender entender um pouco mais sobre o eterno mistério vulgarmente chamado vida.

[9] Idem, Ibedem. Pag 42 e 43

[10] Do gr. stratégema, pelo lat. estrategema.] Substantivo masculino. 1.Ardil empregado na guerra para burlar o inimigo. 2.Fig. Artifício hábil e astucioso; manha, ardil, estratégia: O comerciante usou de ótimo estratagema para atrair a freguesia;“Com dois estratagemas, destruía os receios mais fundados” (Vitorino Nemésio, Mau Tempo no Canal, p. 316). 3.V. armadilha (2).

[11] Schopenhauer, Arthur, O mundo como vontade e como representação. Tradução, apresentação, notas e índices de Jair Barboza - São Paulo: Editora UNESP, 2005.

[12] Segundo Marilena Chaui, em seu convite a filosofia. É muito conhecida a célebre frase de Pascal, filósofo francês do século XVII: “O coração tem razões que a razão desconhece”. Nessa frase, as palavras razões e razão não têm o mesmo significado, indicando coisas diversas. Razões são os motivos do coração, enquanto razão é algo diferente de coração; este é o nome que damos para as emoções e paixões, enquanto “razão” é o nome que damos à consciência intelectual e moral. Ao dizer que o coração tem suas próprias razões, Pascal está afirmando que as emoções, os sentimentos ou as paixões são causas de muito do que fazemos, dizemos, queremos e pensamos. Ao dizer que a razão desconhece “as razões do coração”, Pascal está afirmando que a consciência intelectual e moral é diferente das paixões e dos sentimentos e que ela é capaz de uma atividade própria não motivada e causada pelas emoções, mas possuindo seus motivos ou suas próprias razões. Assim, a frase de Pascal pode ser traduzida da seguinte maneira: Nossa vida emocional possui causas e motivos (as “razões do coração”), que são as paixões ou os sentimentos, e é diferente de nossa atividade consciente, seja como atividade intelectual, seja como atividade moral.

[13] CHAUI, Marilena; Convite à Filosofia; Ed. Ática, São Paulo, 2000.

[14] Teimo em afirmar que nos “meios acadêmicos” de modo específico e geralmente nas nossas “objetividades” simpatizamos muito com a visão de Schopenhauer - sem o saber muitas vezes - do que ele acredita ser a característica da Genialidade. Neste sentido ciência, religião e filosofia não se distinguem e são até bem semelhantes, impulsos ascéticos de negação da vida.

[15] BRUM, Jose Thomaz. O pessimismo e suas vontades: Schopenhauer e Nietzsche. Editora ROCCO 1998. Pag 95 e 97.